Isso é uma insanidade.

Foi esse comentário feito por um amigo que definiu o que eu passei recentemente. E, de fato, não é apenas mais uma bizarrice em meio a tantas outras tragédias educacionais que chocam a todos nós. Infelizmente, estamos nos acostumando a ler manchetes que contam sobre o professor agredido, a escola depredada, a chacina que matou dezenas de alunos. Percebo que estamos quase indiferentes a tudo de ruim que acontece – e faz tempo – nas escolas. Acho que a criação desse blog pode ser uma tentativa de combater essa indiferença; que ainda possamos no chocar; que ainda nos revoltemos com as manchetes; e que eu consiga, sem demora, preservar minha sanidade.

Mas afinal, o que aconteceu?

Trabalhei por poucos meses em uma escola particular gaúcha. Não há porque citar nomes e os envolvidos. Aliás, a bizarrice educacional só muda de endereço e CPF. Fui chamada para um desafio interessante: retomar a paz dentro de uma turma de 6º ano, que havia demitido o professor anterior por causa de casos indomáveis de indisciplina. Os anjos, nomeados de forma sarcástica pela coordenação pedagógica, simplesmente faziam o que queriam em sala de aula. E a escola precisava de um docente que tivesse pulso firme, que implementasse regras e que, finalmente, pudesse dar a aula que eles precisavam. Pois bem, turmas desafiadoras sempre me chamaram a atenção, porque via nesses grupos um certo tipo de pedido de socorro das crianças. Percebia que elas não eram ouvidas, não eram reconhecidas, e a indisciplina era, por fim, um chamado que pedia por limites e amor.

Os primeiros dias na turma não foram nada fáceis. A bagunça era institucionalizada, e qualquer iniciativa de um adulto que colocava regras era rechaçada, desrespeitada. Saía de lá com uma sensação de angústia e raiva, mas a minha vontade de fazer o meu projeto dar certo aumentava na mesma proporção. Minha cabeça fervia com ideias novas, pesquisas sobre função executiva, sobre comportamento. Meu trabalho como professora e pesquisadora da área da educação estava, enfim, sendo colocado em prática.

Bons resultados começaram a surgir. A turma se tornava cada vez menos bagunceira. Meu plano de aula estava sendo cumprido, pais elogiavam as melhorias implementadas. Mas, como nem Jesus agradou a todos, nem eu agradei também. Eu via a adesão dos alunos interessados na aula aumentar, mas também via a força dos poucos descontentes (que sobraram) crescer ao longo das aulas cada vez mais regradas, organizadas e sistemáticas. Críticas à metodologia da aula apareceram, até um motim dos descontentes foi organizado na sala da coordenação pedagógica.

Esse foi o primeiro golpe. Ver um grupo de alunos protestar por causa das regras – veja só, criadas por eles mesmos em uma assembleia sugerida por mim – foi muito duro. Naquele momento senti a ameaça ao meu trabalho. Será que eu estava fazendo tudo certo, conforme a coordenação me pediu? “Daiana, chame a atenção do aluno bagunceiro apenas duas vezes. Na terceira, tire-o da sala, para que os demais alunos possam ter aula”. Era o que eu ouvia. E era no que eu acreditava, pois para mim era absolutamente inconcebível que eu, professora, devesse ceder aos mandos e desmandos de crianças que precisavam da minha autoridade. Acreditava que a escola estava do meu lado. Acho que me senti acolhida e apoiada por um tempo. Mas foi curto e fugaz, assim como minha paciência em alguns episódios. A cada volta para casa, pensava e repensava em minha prática, no que eu podia melhorar. Equivocadamente eu me sentia totalmente responsável por aquela situação.

A indisciplina possui diversas facetas. Uma delas é a desestrutura familiar do aluno, coisa que descobri durante meus dias em sala de aula. A criança líder da bagunça sofria de abandono afetivo por parte do pai. O pai, por sua vez, endeusava a irmã mais velha, que era a criança prodígio da família. Nenhum carinho sobrava para o menino. E a escola virou seu palco, seu QG de traquinagens e disrupções, sempre acompanhado de outras crianças bagunceiras e perdidas na vida. Era a fórmula perfeita para a expressão da revolta contra o sistema: eu, aluno, não recebo a atenção que desejo do meu pai. Não recebo limites. Portanto, não sei até onde posso ir, não sei quando devo parar de chamar atenção, não sei o quanto posso prejudicar meus colegas por causa do meu comportamento. E você, professora, não vai conseguir fazer com que eu te respeite, nem com que eu siga suas regras. Minha angústia é maior do que minha capacidade de obedecer.

Não há nada de errado em disciplinar. Disciplina não tem a ver com autoritarismo. Um aluno não precisa ficar sentado o tempo todo, não precisa ficar em silêncio, não precisa ser passivo a tudo. Ele só precisa entender que deve respeitar a autoridade em sala de aula: o professor. E não, minha ideia não era me tornar mãe ou pai desse aluno. Não queria salvá-la. A única coisa que precisava ser salva era a minha aula.

Eu acredito que todo comportamento é uma forma de comunicação. E as crianças precisam ser compreendidas para que possam fazer sua parte na construção de um ambiente de relações saudáveis, como uma sala de aula deve ser. Infelizmente, algumas famílias estão totalmente desconectadas de seus filhos – e hiperconectadas nas redes sociais do telefone celular. Não sabem o que há na mochila da criança, não entendem porque ela provoca tanta disrupção na sala de aula, não lembram de colocar um sanduíche na lancheira. Cobram a escola, questionam métodos pedagógicos, dizem que os professores não sabem lidar com seus filhos.

Neste caso, os pais do menino em questão não entendiam porque ele estava causando tantos problemas. E não era somente na minha turma. Eram em todas as matérias: matemática, artes, nada escapava. Todos os professores estavam de cabelo em pé, pois não sabiam mais o que fazer diante da indisciplina desses alunos. Mas os pais se recusaram a encaminhar as crianças para psicoterapia, pois acreditavam que era desnecessário. Diziam que conversavam com as crianças em casa e isso era mais do que suficiente.

O golpe de misericórdia estava próximo. Sentia que aquela hostilidade diante do meu trabalho já provocava bastante desconforto na turma, nas famílias que me apoiavam. Minha saúde mental já estava abalada. Repensava minha continuidade naquele lugar, que não sentia mais meu, apesar de ter ouvido o contrário: “Daiana, a sala de aula é sua, você é a autoridade lá dentro”. “Daiana, aqui nessa escola os pais não mandam, nem os alunos. Professor não é showman. Fique firme e tranquila no seu propósito”.

No dia 23 de agosto, meu propósito não servia mais. Fui demitida da escola.

Alguns pais fizeram um motim – mais um! – na direção, atendendo aos pedidos dos filhos descontentes. Essa foi a explicação dada para mim, numa tarde abafada e cansativa, de aura quase desesperançosa. Eu já esperava, disse à coordenação. Serei indicada para qualquer lugar, me disseram. Você é uma excelente profissional e fez um ótimo trabalho, me disseram. Mas não poderemos continuar com você aqui.

A insanidade venceu.

A insanidade de uma escola doente venceu um projeto pedagógico. A insanidade de famílias que não sabem – e nem querem – educar seus filhos, venceu. A insanidade de crianças mimadas que não conseguem lidar com frustrações e vontades não atendidas prontamente, venceu. Nem gostaria de cair no clichê do “Ah, o sistema capitalista é assim mesmo, ganha quem tem dinheiro”. Pode até ser assim, mas em qualquer sistema político (capitalista, comunista, qualquer “ista” que você queira), o professor ainda deve ser a autoridade em sala de aula. Ele está lá para ensinar. E para ser respeitado. Para ter seu pedido atendido pelos alunos. Para obter silêncio quando solicitado. Para ser ouvido pelo grupo quando necessário. E para ajudar na realização de sonhos através do conhecimento.

Continuo, a partir daqui, sendo professora, tentando não desistir da docência, trabalhando pela preservação da decência na minha profissão. Freire me mostrou a boniteza de ensinar, me ensinando a pensar e repensar minha prática o tempo todo. Faria algumas coisas de novo, outras de jeito nenhum. Mas não me arrependo de ter protegido minha instituição – a relação professor-aluno, que é a aula propriamente dita. Essa que é a boniteza da minha vida.


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